Autor: Sérgio Antunes
Publicação: Jornal Estado de São Paulo
Data: 22/09/1999.


Os prazeres de morar sozinho

O bom é morar sozinho. Chegar em casa à noite e encontrar o papelzinho amassado, com o endereço precioso que se deixou pela manhã. Mesmo que seja a manhã de terça da semana passada. Ou poder ligar o rádio, a tevê e ainda ouvir, ao mesmo tempo, o disco preferido – de vinil – além de não ter que dividir com ninguém a lâmina de barbear, especialmente com axilas alheias.

Quer coisa melhor do que assistir àqueles eloqüentes debates esportivos sem ninguém para reclamar? E luta de boxe, então? E comer biscoito na cama ou ficar horas no banheiro lendo o Estadão com ninguém batendo na porta?

Alguns dirão que sou egoísta. Ou avesso à família. Pode ser. O fato é que custei a compreender as delícias indescritíveis, as vantagens inenarráveis, os encantos indisfarçáveis de morar só. Família, é claro, faz falta. Família é como catapora. A gente tem quando é criança, mas carrega as marcas pelo resto da vida. Porém, para estar junto não é preciso morar junto. Até porque incompatibilidade de gênios entre parentes é cada um apertar de um jeito a pasta de dentes.

Os homens se acostumam com companhia. Tornam-se dependentes da atenção dos outros. Criança, o menino divide o quarto com os pais; cresce um pouco, divide com o irmão; rapaz, vai morar com os colegas de faculdade. Aí, irremediavelmente viciado, casa e vai dividir a casa, a cama e o guarda-roupa. Só depois, já separado, após noites insones, incontáveis incursões por bares singles e terríveis apuros tipo “e se ela usar palito, falar menas e pobrema amanhã quando acordar?”, aí o homem amadurece e descobre os encantos de morar só.

Morei uns tempos com um amigo. Não podia entender como é que ele, intelectual remanescente da geração do “é isso aí, bicho”, de repente se irritasse comigo, seu centenário amigo, só porque aparava o bigode na sacrossanta pia do seu banheiro. Ou usava o espelho do quarto, mudando a estratégica posição do reflexo, geometricamente preparada para as batalhas noturnas. Agora que sei das coisas, posso imaginar sua aflição e a de todos os desavisados que dão asilo a recém-separados ou caem no conto do vim passar só o fim de semana. Namorada nova, dizia um experiente solteirão, tem que exibir o CEP antes do exame de HIV. Afinal, casa é como carro: regula-se o retrovisor para nosso jeito de sentar.

É bom poder ir ao banheiro e deixar a porta aberta. Mas não é só. Fazer de sua casa um verdadeiro solar, sua toca e seu mundo, transformar aquelas paredes caiadas na sua verdadeira fortaleza, onde podem conviver suas idiossincrasias com papéis esparramados pelo chão, com testemunho apenas do criado mudo, mais mudo que o criado do Zorro, isto sim é que é morar bem.

Não pensem que estou fazendo apologia da bagunça. Ao contrário. Um amigo ermitão, avesso a qualquer rompante de dona-de-casa, espantou-me ao explicar os cuidados que deveria ter para não molhar o chão do banheiro, inclusive me ensinando truques de umedecer a beirada da cortina de plástico para grudá-la nos azulejos do boxe.

Eu mesmo tenho regras rígidas sobre a utilização dos apetrechos domésticos. A forma de abrir a caixa de leite ou o uso correto dos talheres. Quer dizer, tem faca que é só par descascar laranja, cortar pizza nem pensar. Minha casa, modéstia à parte, é organizada. Tem até samambaia. E área para fumantes.
“Quando em seu coração reina a paz, da menor casa num palácio se faz”, dizia a inscrição do pano de prato. Pode ser. Desde que a casa não seja construída pelo Sérgio Naya. E a gente more nela sozinho. Pelo menos, na maior parte do tempo.

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